Em missão investigativa em Minas Gerais, órgão aponta que situação no Estado é dramática e urgente e assina termo de parceria para elaboração de um relatório.
Assédios sexual, moral e patrimonial. Ameaças de estupro e de morte. Violência política e física. Punição e silenciamento para quem denuncia. Promoção para denunciados. Esse foi um roteiro comum às denúncias feitas por mulheres ao Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), nesta quarta-feira (4/9/24), na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
Em missão destinada a investigar a violência política de gênero e o assédio no Estado, o CNDH ouviu vereadoras e servidoras públicas, em audiência conjunta das Comissões de Direitos Humanos e de Defesa dos Direitos da Mulher da ALMG. Os relatos foram classificados como “estarrecedores” pelo juiz Marcelo Gonçalves de Paula, do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher em Belo Horizonte.
Entre as denunciantes, estava um grupo de servidoras da polícia penal lotadas em Ibirité, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Das 14 policiais do presídio, sete recorreram à Justiça depois do silêncio das estruturas administrativas. Mas até a decisão judicial que afastou dos cargos os dois acusados, foram muitas ameaças e pressões diante da recusa em receber “abraços apertados e cheiros no pescoço”.
Mas o afastamento do cargo, na verdade, foi uma promoção. “O diretor-geral foi realocado, com bônus de R$ 2 mil”, contou Margarete Moreira, uma das policiais. Segundo ela, um dos primeiros atos do outro acusado, o diretor-adjunto, foi cortar o plantão de 24 horas para as policiais femininas. “Ele ainda ofereceu R$ 20 mil para quem topasse uma troca íntima com ele. Quando questionei, ele disse que quanto mais nervosa eu ficasse, mais excitado ele ficaria”, relatou.
Outras policiais também denunciaram agressores e as represálias que ainda estariam sofrendo após as denúncias. Tatiane Albergaria foi aposentada por “invalidez” após acusação de doenças psiquiátricas. Jaqueline Evangelista também foi apontada como paranoica e viu o abusador ser promovido. Outras tiraram a própria vida após os assédios, como lembrou Aldair Divino, pai da escrivã Rafaela Drumond, que se matou em junho de 2023.
Acostumado a ouvir relatos como esses há dez anos, o juiz Marcelo Paula classificou o caso como um grave problema institucional. Para ele, é preciso garantir a efetividade das corregedorias, que também precisam se comunicar.
Vereadoras desistem de novo mandato
Denúncias também vieram de vereadoras de várias cidades mineiras. Karine Santos, do Serro (Central), foi detida e ficou algemada por quase nove horas acusada de desacato a servidor público quando buscava informações sobre a morte de uma criança quilombola. Valéria Lopes, de Ouro Branco (Central), contou que sofria perseguições diárias e recebeu ameaça de surra pelas redes sociais de um colega vereador que é policial. Ambas desistiram de concorrer a um novo mandato.
“Sou a única que fiscaliza de fato e faz representações ao Ministério Público, sem nenhuma vitória. Meus mandados de segurança viraram anos sem nenhum andamento. Nós, mulheres, não temos apoio do Judiciário e nem do Ministério Público e temos medo da polícia. Eu não acredito mais nas instituições. Por isso, encerro minha vida política eleitoral”, desabafou Valéria, lamentando a ausência de autoridades que, a essa altura, já haviam deixado a reunião.
A deputada Ana Paula Siqueira (Rede) lembrou que a violência política é pauta recorrente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, presidida por ela. “Essa é uma estratégia do sistema para nos afastar da política. Somos 52% da população. Não dá para falar em democracia sem participação das mulheres”, frisou.
As representantes do CNDH apontaram que Minas Gerais vive uma situação dramática e urgente, com muitos casos de violência moral nas forças de segurança e de violência política contra mulheres. Antes da audiência, elas se reuniram com vários órgãos. Maria das Neves Macedo lembrou que a missão do CNDH foi motivada por requerimento de várias deputadas, um fato inédito.
Solicitaram a reunião as deputadas Andréia de Jesus (PT), presidenta da Comissão de Direitos Humanos, Ana Paula Siqueira, Beatriz Cerqueira (PT), Bella Gonçalves (Psol), Ione Pinheiro (União), Leninha (PT), Lohanna (PV), Macaé Evaristo (PT) e Maria Clara Marra (PSDB).
Já Virgínia Berriel contou que a escuta do CNDH às policiais de Ibirité começou há cerca dois anos. Ela denunciou casos de aposentadoria para tirar de circulação as denunciantes. “É omissão, conluio e falta de vergonha na cara de autoridades coniventes, que se protegem. É vergonhoso”, afirmou.
Instituições oferecem apoio e apontam prioridades
Diversas instituições participaram da audiência, apontaram ações em andamento e ofereceram apoio às vítimas de violência. O promotor de Justiça Emmanuel Pelegrini afirmou que o Ministerio Público vai acompanhar os casos e que já recomendou aos 304 promotores eleitorais de Minas a priorização dos casos de violência política, tendo em vista as eleições municipais.
Já a presidenta da Comissão Especial de Enfrentamento à Violência Contra Mulheres da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas (OAB-MG), Isabella Pedersoli, salientou que é preciso proteger também quem apoia e ajuda as vítimas. Ela contou que é ré em um processo após ter acolhido a denúncia de advogadas contra “uma figura importante” do Direito.
A superintendente de Prevenção Social à Criminalidade da Secretaria de Justiça e Segurança Pública, Flávia Mendes, afirmou que o órgão possui hoje um protocolo para tratar do assédio moral dentro de sua estrutura e que está em construção um protocolo para o assédio sexual. “Também faço parte dessa luta, também quero um espaço mais equânime de trabalho”, declarou.
A assessora da Chefia Adjunta de Polícia Civil, Michelle Manzalli, afirmou que as denúncias de violência têm sido investigadas e citou a “Operação Di@na”, uma força-tarefa com o Ministério Público que resultou na prisão de um acusado de efetuar ameaças de estupro e morte contra parlamentares mineiras. Segundo a delegada, durante os primeiros oito meses de 2024 foram realizados mais de 5 mil atendimentos psicológicos a servidores da segurança.
Protocolo
Durante a audiência pública, foi assinado um termo de parceria entre o CNDH e universidades públicas de Minas Gerais. Segundo Maria das Neves, o trabalho conjunto entre as instituições resultará em um relatório que será encaminhado a diversos órgãos, entre os quais o Ministério da Justiça e o Tribunal Superior Eleitoral.
A reitora da Universidade Estadual de Minas Gerais, Lavínia Rodrigues, e a diretora da Universidade de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais, Maria Guiomar Frota, enfatizaram a importância da educação e da pesquisa no trabalho de prevenção da violência de gênero.
Ao final da reunião, a deputada Andréia de Jesus disse ter enfrentado uma batalha solitária ao receber ameaças por sua militância em defesa dos direitos humanos. “Se tivessem sido tomadas as providências naquele período, as ameaças não precisavam ter alcançado outras parlamentares”, avaliou.