Traços de personalidade e características do autismo podem se misturar, fazendo com que o transtorno passe despercebido até a vida adulta
Após o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) nos filhos, é comum que os pais recebam a orientação de realizar testes neuropsicológicos para uma compreensão mais aprofundada. Foi dessa forma que a enfermeira Érika Pavoletik descobriu, aos 41 anos, também fazer parte do espectro. Motivada pelo diagnóstico de seu filho ainda na infância, Érika realizou uma série de testes ao perceber que características observadas em seu filho refletiam aspectos de sua própria vivência.
Ao longo da vida, muitas pessoas experimentam a sensação de desconexão social ao não conseguir se comunicar como os outros e dificuldades para se adaptar ao mundo ao seu redor. Embora, muitas vezes, sejam atribuídas à introversão ou a traços de personalidade, essas características podem estar relacionadas a um transtorno, como o Transtorno do Espectro Autista. “O autismo de nível 1 tende a passar despercebido na infância porque os sintomas são sutis. Muitas pessoas só recebem o diagnóstico na fase adulta, ao buscar ajuda médica por outras razões, como ansiedade, insônia ou dificuldades de socialização”, explica André Pires, psiquiatra e diretor do Censa-Betim, instituição referência no atendimento a adultos autistas.
Quando os sinais passam despercebidos
Nos níveis de autismo, que variam de 1 a 3, o nível 1 se caracteriza por sinais menos evidentes e geralmente sem deficiência intelectual, o que permite que a pessoa desenvolva certo grau de autonomia e possa mascarar suas particularidades. No Brasil, segundo dados do IBGE, cerca de 2 milhões de pessoas estão no espectro autista. Muitos dos acometidos passaram grande parte da vida sem diagnóstico, sobretudo ao apresentarem características mais leves do transtorno que são facilmente confundidas com apenas “personalidade forte”. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que existam 70 milhões de autistas.
Percepção do mundo e alívio com o diagnóstico
O diagnóstico de TEA em adultos, mesmo quando tardio, pode ser transformador por trazer uma compreensão mais profunda de dificuldades e características e estimular uma nova perspectiva de lidar com o mundo ao redor. “Compreender a própria condição pode ajudar na busca por terapias focadas e apoio adequado. Com isso, o adulto autista pode se adaptar melhor e evoluir dentro das suas possibilidades”, afirma o Dr. André Pires, que há anos atua no acolhimento e no desenvolvimento de pessoas com TEA.
O diagnóstico tardio de TEA trouxe para Érika um misto de alívio e compreensão. A enfermeira sempre sentiu que havia algo diferente em sua forma de se relacionar com as pessoas. A rigidez em suas interações, a dificuldade de manter contato visual e a interpretação literal das palavras, características comuns em pessoas no espectro autista, muitas vezes a levaram a ser incompreendida. “O TEA não se inicia na fase adulta ou na adolescência. Para realizar o teste neuropsicológico e diagnosticar o transtorno, é preciso revisitar a infância. Atualmente, não tenho amigos da escola ou da faculdade. Perdi muitas amizades por causa da interpretação equivocada do que eu digo, sendo chamada de grosseira ou mal-educada”, explica.
Desafios da comunicação e as particularidades do TEA
Atualmente, Érika ainda enfrenta estigmas em suas interações sociais ao se comunicar. Como participante ativa de uma associação de mães de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), ela se deparou com uma situação conflitante: percebeu que as pessoas demonstram mais empatia e compreensão ao lidar com crianças autistas do que com adultos que possuem o mesmo diagnóstico. Recentemente, sua participação em grupos de discussão foi restringida devido às reclamações por sua forma de se comunicar. Para ela, essa situação é o retrato de como a sociedade tem dificuldade em aceitar e compreender adultos no espectro autista.
Apesar do domínio sobre o assunto TEA, adquirido em duas pós-graduações em educação inclusiva e em treinamento motor para autistas, além de seu hiperfoco no tema, Érika lamenta não poder contribuir com seu saber em certas ocasiões. Sua maneira de se comunicar, devido ao transtorno, muitas vezes não é compreendida e sobressai com o que ela poderia contribuir.
Entre as pessoas no espectro autista, é comum encontrarem desafios na comunicação e na interpretação, tanto verbal quanto não verbal. “Muitas apresentam dificuldade para interpretar linguagem não-verbal, como expressões faciais, ou para compreender metáforas e mensagens com duplo sentido. Além disso, podem ter dificuldade para reconhecer ou identificar emoções e, em alguns casos, sentir desconforto ao receber afeto. Essas características variam em intensidade de acordo com os níveis, mas são traços típicos do autismo”, explica o psiquiatra André Pires.
No caso de Érika, sua dificuldade reside na comunicação não verbal: a dificuldade não está em dizer, e sim na forma como diz, o que acaba gerando interpretações equivocadas e a distanciando dos espaços onde poderia contribuir. “Na minha época de escola, se falava muito sobre dois conceitos: o QI, que era o coeficiente de inteligência, e o QE, o coeficiente emocional. No meu caso, os dois eram inversamente proporcionais. Eu tinha um QI alto, minhas notas eram excelentes, mas meu coeficiente emocional era péssimo”, pontua Érika.
Traços de personalidade do autismo
O forte apego a rotinas e a tendência ao perfeccionismo, características comuns em pessoas com TEA, muitas vezes passam despercebidos, sendo confundidos com simples traços de personalidade, o que pode levar à negligência de um diagnóstico adequado. O vínculo com padrões e regras oferece uma sensação de segurança e previsibilidade, ajudando a evitar a sobrecarga sensorial e emocional frequentemente desencadeada por ambientes imprevisíveis. Embora essa característica contribua para a organização extrema e a execução precisa de tarefas, também pode gerar conflitos e desconfortos no cotidiano, especialmente em situações que fogem ao controle ou rompem com as normas estabelecidas.
Como enfermeira de formação, Érika relata que sua necessidade de seguir normas e protocolos à risca trouxe desconfortos no ambiente de trabalho. “Quando via algo fora do padrão, não conseguia ignorar”, diz ela. Em uma situação específica, enquanto ocupava o cargo de Enfermeira Chefe, Érika assumiu o plantão de uma técnica de enfermagem, que utilizava esmalte vermelho nas unhas e se recusou a usar luvas, necessário para realizar a medição da pressão arterial.
Mas a atitude da enfermeira chefe foi interpretada de forma negativa pela coordenação do hospital, o que evidenciou, para ela, a falta de compreensão e aceitação das características do espectro autista. “A rigidez na rotina, no sentido de que tudo precisa ser feito de uma determinada forma, é muito presente. É muito difícil quebrar um protocolo ou alterar um método. Se, por exemplo, começar a fazer algo da direita para a esquerda, vou seguir sempre esse padrão. Sempre começar a ler da direita para a esquerda ou de cima para baixo. Quando a rotina não é cumprida, isso traz transtornos”, declara Érika.
Evolução
O diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista têm se tornado mais comum ao longo dos anos, graças aos avanços na compreensão clínica. Historicamente, o autismo era frequentemente confundido com outros transtornos, como esquizofrenia ou transtornos de personalidade. Até a década de 1980, os critérios de diagnóstico eram limitados, excluindo pessoas com autismo mais leve, especialmente adultos. “A adoção do conceito de “espectro autista” foi fundamental para que variações mais sutis do transtorno fossem reconhecidas, permitindo uma identificação mais precisa de casos como o autismo de nível 1″, completa André Pires.