Mesmo com alta demanda em setores operacionais, insalubridade, baixos salários e gestão desumana explicam o desinteresse dos trabalhadores.
Por todo o país, empresas de setores como comércio varejista, indústrias de base e serviços operacionais têm enfrentado certa ociosidade com o número de vagas, acompanhado com a falta de candidatos. Porém, a dificuldade em preencher postos de trabalho não decorre apenas da escassez de profissionais qualificados. Alguns especialistas acreditam que há uma razão mais profunda, e menos discutida, para o desinteresse generalizado: a precariedade das condições de trabalho oferecidas.
“A verdade é que muitos empregadores ainda tratam o trabalhador como uma peça de reposição. Ignoram que o trabalho precisa ter sentido e oferecer dignidade. Por isso o desinteresse por certas vagas. Isso está diretamente relacionado à insalubridade, aos baixos salários e a uma cultura organizacional hostil ou ultrapassada”, afirma a psicóloga Bruna Antonucci, especialista em gestão de carreiras e liderança humanizada.
Dados recentes do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostram que, em 2024, o Brasil fechou o ano com mais de 600 mil vagas abertas sem preenchimento, grande parte delas em cargos de baixa ou média complexidade. No mesmo período, mais de 3,8 milhões de brasileiros formalizaram a abertura de um CNPJ como MEI (Microempreendedor Individual), número recorde. O fenômeno escancara a busca por alternativas ao modelo tradicional de trabalho com carteira assinada.
“Para além dos dados, há o impacto da pandemia. A experiência coletiva de isolamento e fragilidade impulsionou uma mudança de mentalidade no mercado. A pandemia escancarou que saúde mental, tempo com a família e propósito de vida não são mais ‘luxos’. São prioridades para uma nova geração de trabalhadores”, analisa Bruna.
As empresas que não acompanharam essa transformação cultural agora sentem os efeitos: alta rotatividade, ausência de engajamento e dificuldades na retenção de talentos. “O problema é especialmente visível em vagas operacionais com jornadas extensas, exigência física intensa e pouca perspectiva de crescimento. A pessoa olha para aquela vaga e pensa: por que eu faria isso por R$ 1.400 e sem reconhecimento?”, resume a psicóloga.
Estudo da consultoria Gartner de 2023 reforça esse diagnóstico: 78% dos entrevistados afirmaram que não aceitariam um emprego que comprometesse sua saúde mental ou seu bem-estar emocional, mesmo diante de necessidade financeira. A geração Z, especialmente, tem colocado qualidade de vida como critério central na escolha profissional.
Essa transformação do perfil dos trabalhadores, somada à ampliação das possibilidades de renda por meio da economia digital e do empreendedorismo individual, enfraquece o apelo de vagas que antes eram preenchidas quase automaticamente. Com isso, o que vemos na prática é que muita gente está preferindo vender bolo no Instagram a se submeter a ambientes de trabalho indesejados.
“Isso precisa ser ouvido com atenção. Para mim, a tendência é clara empresas que não revisam suas práticas internas, que não desenvolvem lideranças mais humanas e que ignoram o bem-estar dos seus colaboradores, continuarão enfrentando escassez de mão de obra, não porque não existam trabalhadores disponíveis, mas porque as condições que oferecem já não convencem. Hoje, quem contrata precisa entender que o trabalhador não quer apenas um salário: ele quer respeito, propósito e qualidade de vida”, finaliza Bruna.